Monday, May 19, 2014

Verdade ou desafio?

Acho que a maioria das pessoas conhece esse jogo adolescente em que as pessoas se obrigam mutuamente a enfrentar um desafio. Sei que a origem dessa brincadeira é gringa porque volta e meia ela aparece em um filme ou seriado americano. O fato é que de qualquer jeito o que vem pela frente é um desafio: seja fazendo algo ousado, difícil ou contando algo embaraçoso e verdadeiro sobre si próprio. E talvez para tornar a tarefa menos dolorosa, é comum ter uma bebida alcóolica envolvida na brincadeira.

Resolvi retomá-la depois de perceber que na minha vida essa dinâmica se repetiu e ainda se repete muitas e muitas vezes. Quando eu era pequeno, de alguma forma consegui extrair do mundo que me rodeava a ideia de que não havia nada de errado comigo. Isso pode ser algo bastante reconfortante em relação à construção da identidade de alguém com uma deficiência, porque traz consigo toda a esperança de poder escapar às estatísticas e ter uma vida boa, como a de quase todos aqueles amigos de escola que de fato não tinham visivelmente nada de errado (pelo menos não uma deficiência física).

A receita para isso é simples, mas requer um nível altíssimo de teimosia irracional: primeiro você apaga da sua vida todos os pontos que corroboram com a existência da sua deficiência. Você simplesmente exclui esses momentos da sua auto-imagem. Além disso, você seleciona todas as situações de convívio social com seus amiguinhos de escola sem deficiência em que suas diferenças ficam nítidas (aulas de educação física ou brincadeiras que exijam um desempenho físico mais extremo) e também despreza a importância delas.

O problema é que aí vem a adolescência, e aí seu auto-conceito é posto à prova dos outros. Até ali, você pode conseguir fazer quase tudo o que quiser, basicamente porque você determina o que quer e até onde vai pra conseguir. Quando não consegue pode se dar uma desculpa e dizer que na verdade não queria aquilo mesmo. Mas quando os hormônios começam a tomar conta do caboclo, ele começa a querer coisas que dependem em grande parte dos outros (ou das outras). Essa hora separa os homens dos meninos, literalmente.

Até então, a diferença prática entre alguém que se aceitasse muito bem com deficiência e uma pessoa que não aceitasse nada em relação a essa condição de desvantagem era nula. Na verdade, é possível dizer que aquele que nega sua natureza tenha mais incentivos para superá-la do que uma pessoa que esteja em paz com o que realmente é. Porque essa pessoa em negação vai às últimas consequências pra manter seu castelo de cartas de pé. Mas acontece que o castelo é mesmo de cartas, e agora o negador depende de ninguém soprá-lo para manter sua ilusão.

Mas é claro que lá fora venta bastante, especialmente em se tratando de meninas adolescentes e lindas com cabelos esvoaçantes. Claramente o castelo vem abaixo! Várias e várias vezes! Então você pergunta: mas que diabos tem isso a ver com verdade ou desafio? Bom, acho que tenho jogado isso comigo mesmo desde que me conheço por gente. Só que sendo muito cabeça dura, eu sistematicamente optei pelo desafio e me meti a fazer aquilo que a verdade teoricamente não permitiria. Assim, o desafio sempre foi a minha maneira maluca de derrotar a verdade.

Porém, a verdade não se cansa mas eu sim, depois de tanto desafio. E como na adolescência, há muitos outros momentos na vida em que precisamos da verdade, até para escolhermos os desafios que vamos querer enfrentar até o fim. Por isso, neste momento eu peço uma trégua à verdade e reconheço o quanto a evitei e combati. Mas agora já não sou menino, e preciso dela pra me guiar. Portanto rogo à verdade que me perdoe por tanto desafio e que ilumine minha estrada. Que por mais que a verdade doa, aceitá-la é ao fim e ao cabo o maior dos desafios.

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