Tenho a impressão de ser a tal da mosca branca ao buscar uma identidade que não deixe nenhuma parte do que sou pelo caminho. Em toda a minha vida, nunca convivi com pessoas com a mesma deficiência que eu fora do ambiente da clínica de fisioterapia onde fiz tratamento por quase vinte anos. Também lá não me lembro de muita gente que tivesse um estilo de vida parecido. Também na época eu não estava procurando.
Minha ideia era muito parecida à que hoje encontro nos esforços de adaptação no mercado de trabalho: aprenda o que precisa para coabitar o mundo tal como é e fuja das complicações do mundo dos que jamais conseguirão.
Mas essa falta de contato com outras pessoas parecidas comigo gerou efeitos que só agora começo a entender mais a fundo. É fato que a comparação com os semelhantes pode oferecer referência para se ser uma pessoa melhor, e caminhar rumo aos próprios objetivos.
As empresas usam isso o tempo todo, no intuito de estimular o esforço dos funcionários e premiar os melhores desempenhos sob sua ótica. A soma destas partes individuais buscando seus interesses individuais beneficia a empresa, que em si alcança objetivos de outra magnitude. Mas no meu caso, no cotidiano, essa comparação sempre era bastante desvantajosa, principalmente na adolescência. Porque ali contava a beleza física, o charme e a atração recém descoberta.
Eu tinha uma clareza teórica obsessiva da minha igualdade em relação aos demais na escola (fruto não de uma digestão da condição humana e da conclusão de que no fim das contas somos todos seres humanos falhos, etc e etc, mas de uma negação quase esquizofrênica). Os sinais que vinham do ambiente diziam o contrario.
O resultado disso, foi uma desconstrução de quem eu era. Mas nada foi colocado no lugar. Acima de tudo nesta época, você é o que os outros acham que você é. E claramente eu era pior aos olhos deles e principalmente delas.
Essa desconstrução gerou um peso próximo do insuportável. Basicamente, porque até ali eu havia pensado que meu intelecto me salvaria da exclusão e do fracasso em geral reservados às pessoas com que de fato poderia me identificar sem grandes ressalvas materiais. Afinal de contas, minha inteligência era normal, até um pouco avantajada, de maneira que não pensava realmente que o futuro fosse ser um problema, já que não precisaria ganhar o sustento carregando caixas ou algo que fosse essencialmente físico.
E aqui eu quero abordar um assunto que acho nunca discuti abertamente. Um assunto que coloca abaixo a teoria pela qual eu sempre me vendi aos outros como alguém normal com uma face exterior diferente e (consenso geral) pior do que o das pessoas ditas normais. O que acontece é que por mais que minha cognição vá bem, obrigado, existem dezenas, ou centenas (de fato não contei) de fatores que fazem com que mesmo nessas dimensões teoricamente imaculadas da minha existência, haja desvantagens.
Sim, eu passei na USP duas vezes entre os 20 primeiros lugares (talvez porque mesmo sem ter coragem de prestar o curso que eu queria, porque tinha certeza que no âmbito médico minha construção de sujeito pseudo-normal cairia rapidinho) eu me preparei para isso. Por uma razão relativamente simples e mecânica que eu sempre quis ignorar. Não tendo uma deficiência impossibilitante, minha vida foi vivida até hoje na tentativa desesperada de me adaptar.
Meu carro não é adaptado (isso não me ajudaria), meu local de trabalho também não. Não porque não haja necessidades diferentes a contemplar. Mas porque essas necessidades não são bem definidas, variam conforme o dia e talvez por causa disso não tenham soluções eficazes. O resultado desta interação com o ambiente é uma desvantagem difusa e muitas vezes invisível. E percebo que tenho papel ativo nesta percepção, já que para mim é nítido que essas desvantagens abertas desde o início (ainda que eu soubesse definí-las) me tornariam ainda menos atraente para o mercado de trabalho voltado ao desempenho e me aproximaria da massa de deficientes excluídos do jogo da vida que eu quero jogar e de preferência ganhar de vez em quando.
Então, neste emprego atual, como em todas as atividades da minha vida, a minha adaptação ao ambiente normal está sempre presente, exigindo gasto alto mas variável de energia e ocultando a verdadeira causa da desvantagem. Porque ao mesmo tempo, reconhecer uma limitação que não seja de cunho exclusivamente físico, significa admitir que a parte mais nobre do meu "eu" também foi afetada por todo este processo. E sendo assim, me obrigaria a aceitar uma vida ainda mais reduzida em experiência e produção e isso seria um golpe duro e duplo. Significaria que além da dimensão física e dos seus desdobramentos mais diretos e os afetivos resultantes, há também que se esperar os desdobramentos relacionados à esfera sagrada da cognição, espaço em que jamais esperei ter de fazer concessões à deficiência, por ser eminentemente física, ainda que central.
De maneira que assim criei minhas armadilhas em que continuo caindo regularmente. Tenho metas altas de mais, por não identificar claramente meus limites e não poder reconhecer abertamente minhas desvantagens. Tento então ignorá-las, já que a ruminação dessas questões não é produtiva porque não traz ação eficaz e não é nada sexy. O que então o mundo externo gentilmente faz questão de destroçar como ilusão, ainda que não de forma clara e objetiva. Afinal de contas sou bem inteligente, e culto, e capaz e educado. Mas o fato concreto e duro como o concreto, é que a desvantagem existe e que ela não pode ser mitigada concretamente. Assim se explica a angústia, a insatisfação e a frustração. A sensação de estar quase lá e a falta de fôlego para a última milha. A necessidade do reconhecimento externo como forma de ter um pouco mais de segurança de que o esforço vai levar a algum lugar e o descontentamento com os resultados sempre aquém dos necessários para exorcizar o fantasma da invalidez, do destino imutável, sina.
Se o título do texto fala de meias verdades e meias mentiras, a verdade inteira é que ainda hoje, infelizmente, um cara como eu ainda não goza dos meios externos para se realizar plenamente como uma pessoa sem deficiência em condições semelhantes de temperatura e pressão. E por mais que eu me culpe por isso o tempo todo, e pense trocentas vezes por hora no que eu posso fazer para contornar essa situação que me revolta, talvez o primeiro passo seja reconhecer esta verdade inteira e a partir dela talvez criar uma alternativa realmente válida e não mais uma experiência de exclusão, desgaste e exaustão.
Está claro, não sou igual a todo mundo, muito menos às pessoas que estudaram comigo em instituições de elite. Talvez a culpa não seja mesmo minha, a não ser de fugir dessa conclusão como o diabo da cruz. Talvez então venha o descanso dos justos, porque ainda que minhas metas estejam todas longe, pelo menos paro com a grande sacanagem inconsciente que fiz comigo desde sempre.